quinta-feira, 15 de setembro de 2016

Folhas de Outono



Ela estava escrevendo aquele livro já havia algum tempo, planejava escrevê-lo por toda a vida, era um conto sobre eles dois.
Escreveu vários capítulos, por vezes passava longos meses sem escrevê-los, simplesmente não conseguia mais retirar de seus pensamentos nada que valesse a pena ir para o papel.
Ela tinha problemas, eles tinham problemas.
Por vezes ela se abria e deixava toda a tristeza desaguar no porto seguro que pra ela era aquela outra pessoa, ela simplesmente não sabia como ele conseguia suportar tudo aquilo, mas ficava feliz por que ele conseguia. As tempestades foram intensas durante aqueles anos. Também houveram festivais de primavera, eles não poderiam ser ignorados. Festivais celebrando a fertilidade da terra, a colheita dos frutos, os sorrisos nas faces dos aldeões.
Para além daquele mundo que eles partilhavam ela tinha aquele mundo particular que era só dela, naquele mundo as estações eram instáveis, havia intensos invernos pontilhados apenas por algumas flores resistentes ao frio.
Certa vez ela se perdeu por vários meses naquela floresta inóspita na qual ela habitava, o portal para entrar naquele local era escondido, a chave talvez já estivesse perdida.
Ela ficou ali presa dentro da floresta que ela mesma criou, e todos os dias continuava caminhando por aquela trilha incerta, sem saber ao menos para onde ela a levaria, apenas continuava a caminhar. A saída para aquele outro mundo em que ela partilhava com outros ainda era visível, mas se tornava cada vez menos atrativa.
Dormiu por várias estações no conforto daquelas folhas, tomava água das fontes límpidas que lá havia, comia dos frutos encontrados pelo caminho, eles tinham coloração escura e um formato diferente das frutas que havia comido naquele outro mundo.
Aquele lugar trazia certa paz, era uma paz de torpor, esquecimento, era diferente, inebriante e convidativo, ela resolveu fazer daquele local sua morada.
Certa vez sentiu como se o portal que a havia trazido até ali estivesse sendo sacudido, podia sentir o tremor por todo o caminho que levava ate o portal, ela primeiro ignorou, e depois resolveu que isso poderia ser perigoso para o seu mundo, que aquilo poderia de alguma forma desequilibrar a perfeição daquele lugar.
Ela abriu uma frestinha da porta, alguém estava lá fora, aquele rosto era conhecido, ela sabia que ele era importante. Ele estendia uma mão, ela segurou em suas mãos, aquelas mãos que seguravam as suas eram tão fortes, chegava a ser quase doloroso.
O portal parecia que iria fechar-se a qualquer momento, as mãos entrelaçadas deles eram a única coisa que ainda cabia na pequena fresta. Ele olhou em seus olhos e eles comunicaram-se daquela forma sem palavras que era peculiar deles, algo desenvolvido ao longo dos anos em que partilharam juntos.
Ele lhe ofereceu uma escolha, ela poderia segurar na mão dele naquele momento e juntos partiriam dali para o mundo em que partilhavam juntos, aquele mundo onde as estações eram mais estáveis, onde os invernos eram longos, mas poderiam se aquecerem juntos à lareira enquanto esperavam pelo momento em que acordariam com o odor fragrante das primeiras flores a desabrochar trazendo consigo os primeiros sinais da primavera.
Deixar aquele mundo gelado e quieto para ela era tão difícil, mas ela decidiu segurar naquela mão e deixou o portal se fechar, ela sentiu que era o certo a fazer.
Ela seguiu para fora daquele mundo, mas algum pedaço dela ficou para trás, as flores da primavera já não pareciam ter o mesmo perfume, as noites em volta da lareira apenas traziam memórias daquele mundo que ela havia deixado para trás. Talvez as velhas histórias fossem verdadeiras, dizem que uma vez que se come dos frutos das fadas nunca se pode voltar a ser o mesmo.
Talvez aqueles frutos que ela havia comido fossem os frutos das fadas, talvez aquele mundo em que ela havia permanecido por tanto tempo tivesse de alguma forma uma ligação com o mundo das fadas, no final todas aquelas dimensões estavam apenas interligadas.
Ela continuava no mundo em que haviam compartilhado, mas era como se cada dia estivesse murchando como uma flor que havia sido transportada para uma terra na qual não pudesse desenvolver-se. Ele tentou, e tentou, seu amor era a água e o adubo, mas a flor não parecia evoluir, no máximo continuava naquele estado estático.
No fim das contas, a torrente de água que ele derramava sobre ela foi diminuindo, como uma fonte lentamente secando, ele também foi perdendo as forças, aquela planta já parecia sem esperança. Talvez a única forma de fazê-la forte novamente fosse deixa-la ir. Quem sabe se ela conseguisse sozinha encontrar aquele portal novamente ela pudesse finalmente ficar bem.
Ele sabia que jamais seria capaz de atravessar aquele portal com ela, ele não pertencia aquele lugar. Não queria ou não devia pertencer, não sabia ao certo, somente lhe restava a certeza de que ele não poderia sobreviver naquele lugar da mesma forma que ela não mais conseguia sobreviver naquele lugar que antes fora deles dois.
Então ele finalmente criou a coragem para fazer aquilo que era necessário. Ele pegou aquele vaso em suas mãos, ele segurou aquela flor pela ultima vez em seus braços, foi trilhando pelo caminho pelo qual recordava de tê-la encontrado, naquela última vez, chegou o mais próximo que se recordava do extinto portal, ele não conseguia enxergar o portal, mas sabia que ali seria a melhor chance dela.
Ele finalmente retirou-a daquele vaso no qual a havia colocado, a plantou de volta no chão, ele sabia que somente ela seria capaz de encontrar o caminho de volta, aquele portal só se abriria para ela.
As estações daquele lugar em que ela costumava viver somente ela poderia controlar. Todas as suas tentativas de intervir foram falhas. Agora só restava esperar que ela conseguisse sobreviver ali.
Então ela foi deixada sozinha naquele local, no começo sentiu falta da água que ele trazia, a falta a fez murchar, não parecia que ela iria sobreviver, e no começo achou que finalmente suas ultimas folhas cairiam.
Foram longos dias, nesses dias as poucas folhas que lhe restavam foram caindo aos poucos, uma a uma, aquela água realmente fez falta.
Só lhe restava uma folha, os galhos estavam murchos, e ela tinha certeza que seria a ultima vez que iria observar a lua, então esperava ansiosa pelo fim da tarde, para saudar a bela lua uma última vez.
Entretanto, quando os primeiros raios de luar vieram e tocaram seus galhos, ela viu uma pequena réstia de luz vindo ali de perto, seu portal estava finalmente se abrindo de novo, no fim aquela última folha caiu, e ela sentiu que todo o seu ser residia ali naquela folha, que quando alcançasse o chão tudo finalmente estaria acabado. Foi então que uma lufada morna de vento veio, e gentilmente ela foi levada através do portal, a última folha, todo o seu ser, estava voltando para o lugar a que pertencia.


Renata Castro
15/09/2016