Ela estava escrevendo aquele
livro já havia algum tempo, planejava escrevê-lo por toda a vida, era um conto
sobre eles dois.
Escreveu vários capítulos,
por vezes passava longos meses sem escrevê-los, simplesmente não conseguia mais
retirar de seus pensamentos nada que valesse a pena ir para o papel.
Ela tinha problemas, eles
tinham problemas.
Por vezes ela se abria e
deixava toda a tristeza desaguar no porto seguro que pra ela era aquela outra
pessoa, ela simplesmente não sabia como ele conseguia suportar tudo aquilo, mas
ficava feliz por que ele conseguia. As tempestades foram intensas durante
aqueles anos. Também houveram festivais de primavera, eles não poderiam ser
ignorados. Festivais celebrando a fertilidade da terra, a colheita dos frutos,
os sorrisos nas faces dos aldeões.
Para além daquele mundo que
eles partilhavam ela tinha aquele mundo particular que era só dela, naquele
mundo as estações eram instáveis, havia intensos invernos pontilhados apenas por
algumas flores resistentes ao frio.
Certa vez ela se perdeu por
vários meses naquela floresta inóspita na qual ela habitava, o portal para
entrar naquele local era escondido, a chave talvez já estivesse perdida.
Ela ficou ali presa dentro
da floresta que ela mesma criou, e todos os dias continuava caminhando por
aquela trilha incerta, sem saber ao menos para onde ela a levaria, apenas
continuava a caminhar. A saída para aquele outro mundo em que ela partilhava
com outros ainda era visível, mas se tornava cada vez menos atrativa.
Dormiu por várias estações
no conforto daquelas folhas, tomava água das fontes límpidas que lá havia,
comia dos frutos encontrados pelo caminho, eles tinham coloração escura e um
formato diferente das frutas que havia comido naquele outro mundo.
Aquele lugar trazia certa paz,
era uma paz de torpor, esquecimento, era diferente, inebriante e convidativo,
ela resolveu fazer daquele local sua morada.
Certa vez sentiu como se o
portal que a havia trazido até ali estivesse sendo sacudido, podia sentir o
tremor por todo o caminho que levava ate o portal, ela primeiro ignorou, e
depois resolveu que isso poderia ser perigoso para o seu mundo, que aquilo
poderia de alguma forma desequilibrar a perfeição daquele lugar.
Ela abriu uma frestinha da
porta, alguém estava lá fora, aquele rosto era conhecido, ela sabia que ele era
importante. Ele estendia uma mão, ela segurou em suas mãos, aquelas mãos que
seguravam as suas eram tão fortes, chegava a ser quase doloroso.
O portal parecia que iria
fechar-se a qualquer momento, as mãos entrelaçadas deles eram a única coisa que
ainda cabia na pequena fresta. Ele olhou em seus olhos e eles comunicaram-se
daquela forma sem palavras que era peculiar deles, algo desenvolvido ao longo
dos anos em que partilharam juntos.
Ele lhe ofereceu uma
escolha, ela poderia segurar na mão dele naquele momento e juntos partiriam
dali para o mundo em que partilhavam juntos, aquele mundo onde as estações eram
mais estáveis, onde os invernos eram longos, mas poderiam se aquecerem juntos à
lareira enquanto esperavam pelo momento em que acordariam com o odor fragrante
das primeiras flores a desabrochar trazendo consigo os primeiros sinais da
primavera.
Deixar aquele mundo gelado e
quieto para ela era tão difícil, mas ela decidiu segurar naquela mão e deixou o
portal se fechar, ela sentiu que era o certo a fazer.
Ela seguiu para fora daquele
mundo, mas algum pedaço dela ficou para trás, as flores da primavera já não
pareciam ter o mesmo perfume, as noites em volta da lareira apenas traziam
memórias daquele mundo que ela havia deixado para trás. Talvez as velhas
histórias fossem verdadeiras, dizem que uma vez que se come dos frutos das
fadas nunca se pode voltar a ser o mesmo.
Talvez aqueles frutos que
ela havia comido fossem os frutos das fadas, talvez aquele mundo em que ela
havia permanecido por tanto tempo tivesse de alguma forma uma ligação com o
mundo das fadas, no final todas aquelas dimensões estavam apenas interligadas.
Ela continuava no mundo em
que haviam compartilhado, mas era como se cada dia estivesse murchando como uma
flor que havia sido transportada para uma terra na qual não pudesse desenvolver-se.
Ele tentou, e tentou, seu amor era a água e o adubo, mas a flor não parecia
evoluir, no máximo continuava naquele estado estático.
No fim das contas, a
torrente de água que ele derramava sobre ela foi diminuindo, como uma fonte
lentamente secando, ele também foi perdendo as forças, aquela planta já parecia
sem esperança. Talvez a única forma de fazê-la forte novamente fosse deixa-la
ir. Quem sabe se ela conseguisse sozinha encontrar aquele portal novamente ela
pudesse finalmente ficar bem.
Ele sabia que jamais seria
capaz de atravessar aquele portal com ela, ele não pertencia aquele lugar. Não queria
ou não devia pertencer, não sabia ao certo, somente lhe restava a certeza de
que ele não poderia sobreviver naquele lugar da mesma forma que ela não mais
conseguia sobreviver naquele lugar que antes fora deles dois.
Então ele finalmente criou a
coragem para fazer aquilo que era necessário. Ele pegou aquele vaso em suas
mãos, ele segurou aquela flor pela ultima vez em seus braços, foi trilhando
pelo caminho pelo qual recordava de tê-la encontrado, naquela última vez, chegou
o mais próximo que se recordava do extinto portal, ele não conseguia enxergar o
portal, mas sabia que ali seria a melhor chance dela.
Ele finalmente retirou-a
daquele vaso no qual a havia colocado, a plantou de volta no chão, ele sabia
que somente ela seria capaz de encontrar o caminho de volta, aquele portal só
se abriria para ela.
As estações daquele lugar em
que ela costumava viver somente ela poderia controlar. Todas as suas tentativas
de intervir foram falhas. Agora só restava esperar que ela conseguisse
sobreviver ali.
Então ela foi deixada
sozinha naquele local, no começo sentiu falta da água que ele trazia, a falta a
fez murchar, não parecia que ela iria sobreviver, e no começo achou que
finalmente suas ultimas folhas cairiam.
Foram longos dias, nesses
dias as poucas folhas que lhe restavam foram caindo aos poucos, uma a uma, aquela
água realmente fez falta.
Só lhe restava uma folha, os
galhos estavam murchos, e ela tinha certeza que seria a ultima vez que iria
observar a lua, então esperava ansiosa pelo fim da tarde, para saudar a bela
lua uma última vez.
Entretanto, quando os primeiros
raios de luar vieram e tocaram seus galhos, ela viu uma pequena réstia de luz
vindo ali de perto, seu portal estava finalmente se abrindo de novo, no fim
aquela última folha caiu, e ela sentiu que todo o seu ser residia ali naquela
folha, que quando alcançasse o chão tudo finalmente estaria acabado. Foi então
que uma lufada morna de vento veio, e gentilmente ela foi levada através do
portal, a última folha, todo o seu ser, estava voltando para o lugar a que
pertencia.